segunda-feira, 15 de novembro de 2010

POVO LIVRE DE LIBRÉ

Ficamos tensos, quando pretendemos falar de liberdade. Vocábulo intimidador, afeiçoa-nos ao rosto uma circunspecção de urgência, faz-nos gosmentos, afila as ventas mais espraiadas, leva-nos a adoptar a posição de pensador à Rodin, retira em ideias o que faz sobrar em gestos esvoaçantes. Liberdade é, entre nós, um desafio à real utilidade dos nossos supostos 100.000 milhões de neurónios.

Não havendo da liberdade sequer um conceito, fazemos dela um confeito para todos os gostos e paladares. Eis por que, movidos de arroubos de patriotismo de fancaria, já lhe chamámos Santa Liberdade, montando-a a cavalo e sem cair (Hino da Maria da Fonte) ou, não abandonando a zoologia, também já a pusemos a falar pelo bico do «Passarinho preso», porque, ainda bem!, não era dodó:
                                    ……………………..
                                    Da minha sorte j’agora
                                    Queixas não torno a fazer;
                                    Antes gaiola que um tiro,
                                    Antes penar que morrer. (Bocage)

Antes, digo eu, uma arrochada à maneira do ignoto Manuel Laranjeira: «Ninguém lhe [ao povo ] ensinou os seus direitos e deveres. Ele dos direitos do Homem tem apenas a noção secular, tradicional – obedecer. Os seus direitos de cidadão livre? Mas como querem que ele os defenda, se nem sequer sabe que eles existem?[…] Deram-lhe liberdade, oh!, fartaram-no de liberdade. Tão-somente não o ensinaram a estimá-la e a defendê-la. […] Não nos iludamos. Ou nos salvamos nós, ou ninguém nos salva. […] Os messias de quadrilha, esses têm um ventre esfíngico e mais difícil de saciar que o ventre misterioso das nações vivas quando andam à caça das nações mortas para as devorar.» (O Norte, 14 de Janeiro de 1908).
E enfureceram-se os nossos egrégios avós, ao saberem do «poor, paltry slaves» com que Byron nos brindou!
Salvien de Marselha (séc. V) explica o que, para ele, esteve na origem da queda do império romano: «Para não morrerem sob a persecução pública, as camadas populares vão procurar entre os Bárbaros a humanidade dos Romanos, porque não podem suportar mais, entre os Romanos, a desumanidade dos Bárbaros. Diferem dos povos em que se refugiam; não têm nada das suas maneiras, nada da sua maneira de falar, e, se me é permitido dizê-lo, o que se diz mesmo nada do odor fétido e dos trajos bárbaros; preferem, todavia, submeter-se a esta dessemelhança de costumes a ter que sofrer, entre os Romanos, a injustiça e a crueldade. […] Agrada-lhes mais viver livres sob uma aparência de escravatura, do que como escravos sob uma aparência de liberdade.» Consta que Salvien perit ridendo – que morreu de tanto rir!
E não dá vontade de morrer a rir que os ocidentais baluartes dos direitos, liberdades e garantias mendiguem capitais junto de nações que estão-se nas tintas até para os Direitos do Homem? Ou já o Belo não está na Liberdade, e na Independência a fuga à opressão?!
            Compreenda-se por que o lendário Zêuxis (464 a.C. – 398 a. C.) também morreu de riso. Uma velha muito feia encomendou-lhe uma pintura de Afrodite. Mas com uma condição: a de ser ela o modelo do pintor!
         Costa Carvalho

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