domingo, 26 de dezembro de 2010

A liberdade de amar


Creio no Mundo como num malmequer,  
Porque o vejo. Mas não penso nele 
Porque pensar é não compreender... 
O Mundo não se fez para pensarmos nele 
(Pensar é estar doente dos olhos) 
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... 
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... 
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, 
Mas porque a amo, e amo-a por isso, 
Porque quem ama nunca sabe o que ama 
Nem sabe porque ama, nem o que é amar... 
Amar é a eterna inocência,  
E a única inocência é não pensar... 
 (Alberto Caeiro)

Porque amar é sonhar, viajar, tocar, sorrir, ser livre e ao mesmo tempo suavemente preso, não ter idade, seguir ideais.

É estarmos de mãos dadas a ver o pôr-do-sol e mergulhar na paixão da noite!


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Liberdade de movimento



É Sábado. Chove. Ela dança. Não é a dança da chuva. É a dança com a chuva. Troveja. Um relâmpago. Ela dança. Está na hora. E ele chega. Sentem-se, cheiram-se. Estão prontos. No chão e em posição fetal ela sofre, desenrola o corpo morto pelo piso frio e fica de joelhos. Tomba para o lado esquerdo, caída levanta o peito em direcção ao céu como que possuída estivesse. Pára. Ele olha-a e não se move, não deixa a cadeira onde se sentou, só se dando ao trabalho de respirar. Ao som da chuva forte ela cai, rebola, levanta, corre, gira e pára. Pára apenas quando os clarões iluminam a sala. Pára como um espasmo e continua a correr em êxtase, puxa-o e entrega-se ofegante. Frente-a-frente a sua cabeça desiste contra o peito dele. Escuta-o. Sussurra - dança comigo... Ele nega. Ela empurra-o. Os seus braços perderam a graciosidade e expressam palavras agressivas pelo ar. O seu corpo acompanha aquele discurso odioso e com os joelhos flectidos ela roda, roda, roda até chegar ao chão. Foi derrotada. As pernas hirtas apontam para o céu, como se atraíssem um forte relâmpago que terminasse com aquele tormento. E continuam a subir até decaírem por entre a sua cabeça. Com o peso do mundo sobre os ombros ela desfaz numa cambalhota e fica imóvel.
Uma lágrima vadia escorre movimentando-se livremente pela face, escorregando até ao queixo, deixando o rasto húmido de uma vontade negada. Desliza até cair na madeira e ele aproxima-se silenciosamente. Levanta-a. Ela vira costas. Ele rodopia-a e eleva-a. Exibi-a pelo espaço vazio, ostentando uma relíquia, como se todas aquelas gotas de água não lhe pudessem tocar. Desafiando a gravidade ele vira-a no ar. Ela estende os braços e sorri, apreciando um tecto nunca antes visto. Suavemente o seu corpo desliza pelo dele, os seus pés já sentem as tábuas e o seu pescoço sente a respiração de um homem que já queria dançar. Juntos envolvem-se pelo espaço. Com o seu característico cou-de-pied ela pinta linhas coloridas pelo ar. Ele segue-a, deslizando pelo chão e rodando pelo ar. Os seus corpos parecem folhas secas a pairar com o vento. Não voam só por voar, voam na esperança de se voltarem a encontrar. Param. Ofegantes sorriem um para o outro e beijam-se em tom de despedida. Ele sai, deixando naquele ar que ainda dança um olhar nu e feliz. Ela sorri, sorri, vai sorrindo, o sorriso diminui, o sorriso desaparece. Ficou sozinha. As mãos acordam a cara, brincam com o cabelo, percorrem o corpo suado e chegam ao chão. Ela faz um freeze, como se assim congelasse aquele momento. Desmancha. Fica em posição fetal, perdida naquele palco grande demais, sujo demais, tudo demais sem ele. Ali fica, até perder consciência do tempo, das rotinas, de tudo aquilo que tira a liberdade ao seu corpo. Ninguém entendeu o que ali se passou. Nada estava ensaiado ou agendado. Foi um turbilhão de movimentos e sensações livres, um refúgio dos movimentos diários que os braços e pernas são obrigados a repetir todo o dia, durante muitos dias.
            O minuto chegou. A campainha toca, as mãos automaticamente pegam a mochila, as pernas dirigem-se para a porta de saída, os dedos limpam a testa e os pés abandonam a sala. O momento da liberdade acabou.
            É na liberdade de dançar com as palavras, pontos e vírgulas que surge este texto estranho. Houve certamente palavras incompreendidas que nem se quiseram dar a entender, porque a mão não quis abdicar do seu movimento livre para as explicar.

Michelle Cascais Rita

sábado, 11 de dezembro de 2010

Liberdade do duplo sentido da palavra


Como nos diz Philippe Breton “UMA ESTRANHA CARACTERÍSTICA DA PALAVRA HUMANA é a de ter duplo sentido (…) dupla direcção. Ela é dirigida ao mesmo tempo aos outros (…) e ao próprio locutor, no diálogo interior.” Esta dupla articulação da palavra permite relacionarmo-nos com o mundo exterior e com nós próprios. É neste diálogo interior que a palavra nos permite a introspecção, o relacionamento com a parte mais privada do nosso ser.
Esta liberdade de ninguém controlar os nossos pensamentos, sentimentos ou sonhos, a não ser as nossas percepções e os nossos receios, permite-nos extrair-nos de nós mesmos, separando-nos do mundo e de nós. A palavra abre-nos um espaço que permite o nosso desenvolvimento como pessoas.
Domina ainda o nosso ser social ao permitir o nosso relacionamento com o outro. Assim, somos o resultado das experiências que vivemos, dos livros que lemos, dos lugares que percorremos e sobretudo das pessoas com que nos cruzamos.
As pessoas que emergem na nossa vida de forma relevante, não é em vão, enriquecem-nos, criam um vínculo de forma invisível.
 “Tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas” (Saint-Exupéry).
 Levam-nos sim a atingir um nível, onde subimos degrau a degrau, permitindo-nos viver a vida na sua plenitude, fazer emergir a parte mais privada do nosso ser, por vezes não estar completamente no mundo, a atingir aquela liberdade interior que nos conduz onde o pensamento nos permite.
Transpomo-nos assim para um novo estádio da nossa vida!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Exercitando a Liberdade

John Stuart Mill escreveu, em 1859 (!): “A única liberdade que merece o nome é a liberdade de procurar o nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos seus esforços para o alcançar. (…) As pessoas têm mais a ganhar em deixar que cada um viva como lhe parece bem a si, do que forçando cada um a viver como parece bem aos outros.” Parece-me que este conceito de liberdade cobre aproximadamente todas as suas vicissitudes, mesmo que hoje em dia pareça apenas mais um truísmo, uma parangona lançada aos quatro ventos para fazer um brilharete com a nosso “esclarecimento intelectual”. Mesmo assim, esta frase feita, cinzelada com o escopro das ideologias no nosso “código genético” cultural, não é facilmente refutada na sua essência, e poderemos perseguir a ideia que nela se veicula como objectivo de vida, como uma meta dos nossos exercícios de liberdade.
No entanto, como bem sabemos, a sociedade tem de estabelecer padrões, construindo obrigações e deveres inevitáveis. Mas tais agrilhoamentos serão, em última instância, garantias de que a liberdade não cairá nos braços bronzeados de apenas uns poucos. A liberdade exercita-se, muscula-se, procura-se activamente, não por testes constantes aos limites físicos e de poder mas sim através daquilo que muito bem se chama “alargamento de horizontes”. Fernando Pessoa dizia: “Porque eu sou do tamanho do que vejo, e não do tamanho da minha altura.” Permitam-me (e permitam-se) que o repita hoje e todos os dias.
            A maioria das pessoas encontra-se demasiado agarrada ao mundo, como se olhassem de dentro de si próprias - do seu próprio universo - para esta vida que levamos a correr. Explico melhor: existe uma espécie de limiar, das coisas do dia-a-dia, que temos de saber superar, olhando “de cima” para a humanidade. Só assim conseguiremos relativizar os nossos problemas, e sentir um aconchego por fazermos parte de algo maior. Seremos mais descontraídos. Contudo, para atingirmos o contrário absoluto desta forma de vida teríamos de ir viver para as montanhas, saindo por completo do mundo, das inquietações quotidianas da modernidade. Acabaríamos por ser igualmente fúteis, por nada nos agarrar à terra.
            Assim, esperando que concordem comigo, proponho que a melhor maneira de aproveitarmos estes dias em que mantemos os olhos abertos será subindo ao limiar de que já falei, algures na atmosfera, de forma a tratarmos dos acasos das nossas vidas, enquanto, ao mesmo tempo, mantemos um filosófico olhar nas deslumbrantes grandezas do mundo.
            A minha sugestão é a literatura. Ler como exercício de liberdade. Podia arriscar ir mais longe nos meus conselhos, e dizer que existem livros mais libertadores que outros. Mas isso, como somos livres, fica ao critério de cada um, até porque ler por prazer, a única forma de o fazer, também dá lugar a livros menos “pesados”, no sentido de que precisamos de uns metafóricos pesos para tonificarmos os nossos bíceps cerebrais. Visitem uma biblioteca pública e sigam esta verdade insofismável: normalmente, os romances com mais fita-cola nas lombadas são os melhores.
É verdade, e decerto virão a concordar comigo se seguirem o meu conselho: ler um bom livro é uma das melhores maneiras – é de certeza a mais automática e célere – de alargar os nossos horizontes, de aprender a sentir e a pensar diferente (e que não há mal nenhum nisso, por tudo já ter sido sentido e pensado por outros antes de nós), e de ver mais daquilo que está à nossa volta. Ver mais do que aquilo que está à vista.
            Os livros de uma biblioteca são os maiores artefactos da democracia – são os depositários da liberdade (o Homem livre não está preso ao mundo) e são livres, não dependendo da economia, mas do interesse de cada um. Se a minha biblioteca pessoal já começa a reflectir aquilo que sou (em construção até ao fim e de olhos postos além do que vejo), uma biblioteca pública mostra-nos, de uma forma pungente e sincera, aquilo que somos como humanidade (eternamente em construção e de olhos postos em tudo). Façamos das bibliotecas os mais verdadeiros ginásios, onde exercitamos a nossa liberdade e alargamos o nosso mundo com todos os mundos ainda à espera de serem lidos. É apenas uma questão, como já disse, de arriscarmos ver de mais alto tudo aquilo que podemos ser.


emanuelmadalena@hotmail.com