segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Liberdade de movimento



É Sábado. Chove. Ela dança. Não é a dança da chuva. É a dança com a chuva. Troveja. Um relâmpago. Ela dança. Está na hora. E ele chega. Sentem-se, cheiram-se. Estão prontos. No chão e em posição fetal ela sofre, desenrola o corpo morto pelo piso frio e fica de joelhos. Tomba para o lado esquerdo, caída levanta o peito em direcção ao céu como que possuída estivesse. Pára. Ele olha-a e não se move, não deixa a cadeira onde se sentou, só se dando ao trabalho de respirar. Ao som da chuva forte ela cai, rebola, levanta, corre, gira e pára. Pára apenas quando os clarões iluminam a sala. Pára como um espasmo e continua a correr em êxtase, puxa-o e entrega-se ofegante. Frente-a-frente a sua cabeça desiste contra o peito dele. Escuta-o. Sussurra - dança comigo... Ele nega. Ela empurra-o. Os seus braços perderam a graciosidade e expressam palavras agressivas pelo ar. O seu corpo acompanha aquele discurso odioso e com os joelhos flectidos ela roda, roda, roda até chegar ao chão. Foi derrotada. As pernas hirtas apontam para o céu, como se atraíssem um forte relâmpago que terminasse com aquele tormento. E continuam a subir até decaírem por entre a sua cabeça. Com o peso do mundo sobre os ombros ela desfaz numa cambalhota e fica imóvel.
Uma lágrima vadia escorre movimentando-se livremente pela face, escorregando até ao queixo, deixando o rasto húmido de uma vontade negada. Desliza até cair na madeira e ele aproxima-se silenciosamente. Levanta-a. Ela vira costas. Ele rodopia-a e eleva-a. Exibi-a pelo espaço vazio, ostentando uma relíquia, como se todas aquelas gotas de água não lhe pudessem tocar. Desafiando a gravidade ele vira-a no ar. Ela estende os braços e sorri, apreciando um tecto nunca antes visto. Suavemente o seu corpo desliza pelo dele, os seus pés já sentem as tábuas e o seu pescoço sente a respiração de um homem que já queria dançar. Juntos envolvem-se pelo espaço. Com o seu característico cou-de-pied ela pinta linhas coloridas pelo ar. Ele segue-a, deslizando pelo chão e rodando pelo ar. Os seus corpos parecem folhas secas a pairar com o vento. Não voam só por voar, voam na esperança de se voltarem a encontrar. Param. Ofegantes sorriem um para o outro e beijam-se em tom de despedida. Ele sai, deixando naquele ar que ainda dança um olhar nu e feliz. Ela sorri, sorri, vai sorrindo, o sorriso diminui, o sorriso desaparece. Ficou sozinha. As mãos acordam a cara, brincam com o cabelo, percorrem o corpo suado e chegam ao chão. Ela faz um freeze, como se assim congelasse aquele momento. Desmancha. Fica em posição fetal, perdida naquele palco grande demais, sujo demais, tudo demais sem ele. Ali fica, até perder consciência do tempo, das rotinas, de tudo aquilo que tira a liberdade ao seu corpo. Ninguém entendeu o que ali se passou. Nada estava ensaiado ou agendado. Foi um turbilhão de movimentos e sensações livres, um refúgio dos movimentos diários que os braços e pernas são obrigados a repetir todo o dia, durante muitos dias.
            O minuto chegou. A campainha toca, as mãos automaticamente pegam a mochila, as pernas dirigem-se para a porta de saída, os dedos limpam a testa e os pés abandonam a sala. O momento da liberdade acabou.
            É na liberdade de dançar com as palavras, pontos e vírgulas que surge este texto estranho. Houve certamente palavras incompreendidas que nem se quiseram dar a entender, porque a mão não quis abdicar do seu movimento livre para as explicar.

Michelle Cascais Rita

1 comentário:

  1. Não nos preocuparmos com as palavras: são livres. São apenas "o espírito que por elas passa". Numa página em branco, outrora papel frágil - hoje uma parede branca de luz onde dança um cursor, caem palavras como cai a chuva, a lágrima, um corpo cansado.
    Dançar com as palavras é um exercício difícil, mas faça-se luz. Fiat lux! Formas, cores. O cursor perdido na parede branca e uma barra intermitente, ansiosa, um ímpeto de deixar letras para trás. Serão palavras, se confiarmos nesta fé que surgiu do nada, com a sua convicção de se tornar matéria, luz, forma, cor. Serão frases, como esta que descobre os
    dedos bailando sobre as teclas, numa pulsação de estalidos secos, empurrando palavras pelas linhas como sangue pelas veias, numa profusão frenética que já adivinha um peito que respira, movendo-se calmamente, num parágrafo lento, num texto livre, de palavras livres e de liberdade. É na liberdade de dançar com as palavras que surge a escrita, e nessa liberdade surgiu esse texto que tomei a liberdade de gostar e de glosar, num comentário que agora, livremente, chega ao fim.

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